Thursday, September 6, 2018

Um Rosto



UM ROSTO
Era um rosto assustador, quem o fixasse morria.
Não se sabia porquê, não tinha forma de nada 
e só surgia nos sonhos daqueles que não dormiam.


Mini-mini contos: O Menino



Era um menino especial: olhava, mas não falava.
Em cada palavra vista descobria algum sentido. Sentidos que tinham côr e ele não dizia a ninguém. Olhava, mas não falava.

Na côr que ninguém sabia estava todo o seu dizer.




Thursday, August 23, 2018

FRANK


FRANK
O seu nome era Frank.
Apenas queria ser feliz, ter alguém que o amasse e que ele pudesse também amar de volta. Mas com aquele seu corpo monstruoso, retalhado e muito mal cosido, mãos tão grandes que não serviriam para carícias, só para apertar pescoços, que poderia fazer? Escondia-se de dia, e à noite saía pelas ruas, ia por vezes a uma floresta próxima, sentava-se numa pedra e chorava como uma criança abandonada.
Ninguém sabia dele, e ele assim nunca saberia de ninguém.

(ao Filipe Melo, e aos artistas do cadavre-exquis que ele foi desafiando para o JL de homenagem a Mary Shelley, em 29 de Agosto de 2018).


Monday, February 5, 2018

Yemanjá


Yemanjá

Aproximam-se os dias:
Máscaras de Carnaval
para afastar o medo

a Rainha do Mar
jaz
estendida na praia

quem a virá buscar
quem será o primeiro?

Dedicado ao Telmo Castro e ao Nuno Meireles, nesta semana que será de Carnaval, italiano ou brasileiro...eu ouvia Betânia...)


Thursday, February 1, 2018

A Génese do Texto

A David Mourão-Ferreira em homenagem

Escrever é uma forma de terapia.
Graham Greene

Escrever é uma forma de doença.

Y. K. Centeno

O Amigo tinha-lhe pedido um texto para a revista de Viagens. É difícil começar, dissera. Para mim é o mais difícil. Não basta a ideia, é preciso o impulso, a força da palavra escrita, não sei, não quero prometer nada.


Era domingo, e ela estava mais uma vez a remexer nos cadernos, nos papéis, escolhendo o que guardava e o que deitava fora. Deitava fora muita coisa, muito papel inútil. Mas guardava, pelo menos temporariamente, aquelas notas que tinham a marca da «génese» dos textos. Era tão variado esse começo: uma ideia, ou uma imagem já algo ritmada, discursos mais longos e logo abandonados.

Parou a arrumação para ler com mais cuidado as folhas onde tinha as «Coisas da Catalunha».Talvez aquilo servisse para a revista do amigo. Não era bem um relato de viagem, mas era o que aquela viagem tinha suscitado: algumas observações, e dois poemas. Quem se interessa por poemas numa revista de viagens? Ainda que eles tenham surgido naquela circunstância? E interessa, ao leitor vulgar a circunstância do poema? A tal «génese» do texto?

Deixou o escritório e foi para a cozinha fazer café, decisão recebida com aplauso pelos filhos, sentados a ver um desafio de futebol. O Porto, ou o Benfica, ou algo assim. Ah, a génese, seja do que fôr, tem muito que se lhe diga. Por exemplo, esta decisão do café: não estava relacionada com a sua sede, ou o vício, a falta de café - tinha antes a ver com a dificuldade da questão da viagem, e do amigo... Fazer o café, e a seguir tomá-lo, era uma espécie de fuga. A tomar café ganhava algum tempo.

Quando regressou ao escritório, e recomeçou a ordenar a papelada, pensou que teria sido melhor dizer logo que não. Não tinha tempo, não tinha ideias, não tinha nada.

«Coisas da Catalunha». Soava bem, o título.
Telefonou ao amigo: olha, só tenho uma hipótese, aproveitar umas notas de quando estive em Barcelona... Serve?
Se calhar tão contrariado como ela, e só por amizade, ele disse que sim, que sim, do outro lado do fio. Que pena não se poder ver a cara de quem está a falar ao telefone.

Bom, mas agora não tenho outro remédio. Passo a limpo estes textos. E deixo-os com os poemas. Eles são a própria génese dos poemas, e sem os poemas não se perceberiam, não ficariam completos. O que ali acontece, e agora vejo com mais clareza, é o caminhar da palavra até à fulguração final, até ao fecho em que o poema se constitui.

Serei mais poeta do que prosadora? A prosa exige um esforço tão grande, e tão continuado... Não tenho vida para a prosa, hoje em dia. Mas aspiro, em segredo, à fuga do poema.

Preparou o computador. Tinha aprendido a mexer nele há pouco tempo, com a ajuda do filho mais novo. Escreveu o título:


Coisas da Catalunha.

Aumentou o tamanho das letras, para não se cansar.


Coisas da Catalunha.

Lembrou-se da pergunta que outrora um jornalista lhe fizera:
precisa de algum ritual, antes de começar a escrever? Não, não precisava. O que precisava era mesmo de começar. Começar era o
mais difícil...

Coisas da Catalunha.

Na verdade mentira ao jornalista. Mas haverá algum escritor
que não minta? Pegar na caneta, ou mesmo só sentar-se à mesa e fixar os olhos na distância, é o princípio da mentira. Não precisa de rituais para começar. Mas ritualiza, muitas vezes, o questionar da obra feita. Entrar em diálogo com os seus mestres chineses, sempre tão misteriosos e tão inacessíveis. Insiste na interrogação. É um perguntar que se esgota em si mesmo, não exige resposta. A própria pergunta é já resposta. Nisso consiste o ritual. Teria o jornalista compreendido o que ela lhe poderia dizer, se o tivesse dito? Fora mais prudente mentir.

Desligou o computador e pegou na caneta. Tirou da estante a sua Bíblia interior, o Yi-King (ela insistia na tradução francesa, que considerava excelente), e abriu-o ao acaso. Mas não há acasos, como é sabido, há coincidências. E leu, cumprindo um ritual que seria o do fim do ano: Cheng: a madeira e a terra. O impulso para o alto. O fortalecer da vontade. Recolhimento e apagamento humildes. Estava traçado o caminho.

Foi então que viu desenhar-se à sua frente a figura do pai: morrendo em silêncio, tão discreto que mal parecia ter vivido. Escrevera, a dada altura, não sobre o pai, mas do pai, do seu exemplo. Sabia agora, com o passar dos anos, que algo de parecido lhe estava reservado: armazenar nunca, distribuir sempre. O ter era-lhe vedado, e tanto mais quanto mais se lhe abria a fronteira do ser.

Nem valia a pena consultar o seu Mestre. O exemplo do pai ali estava para confirmar a herança, com a sua legítima verdade. Penosa? Às vezes. Estava perdida a «loucura juvenil» (Mong). Seguiam-se a «humildade» (K'ien), e a «retirada» (Touen).

E tudo na esperança de uma «plenitude» que talvez nunca fosse concedida. Fong possui a chama e o trovão, a energia espiritual e a capacidade da explosão.

Luz interior, movimento exterior... De repente não soube ou não quis continuar. Pousou a caneta (não era a sua, onde teria deixado a sua? era a do marido, convinha não a perder) e dobrou as folhas de papel com os caracteres chineses. Talvez o filho soubesse metê-los no computador. Com o scanner? Era scanner que se chamava? E como funcionaria?

Já estava a imaginar a reacção do amigo: que maçadora, falar da Catalunha misturando na prosa a poesia, destruindo-lhe o sub-género «narrativa de viagens» e ainda por cima fechando com chineses, uma cultura tão distante.

Que mais diria ele se a visse naquele momento a filosofar com o seu Mestre, como se ele estivesse ali presente? Nunca perceberia que era de uma viagem que se tratava. De uma viagem ao difícil oriente da alma, na transição de um ano para o outro.

Por gentileza, ou só para o contrariar? acrescentou ao texto já existente, com dois poemas, um terceiro e último poema:

Jardins suspensos:
Saber as coisas
não é saber o seu nome.
O nó que as prende
a espuma que as recobre.

Esperava já ter chegado ao fim quando encontrou num caderno
mais antigo umas páginas soltas, com um conto. Não tinha título, falava de um bicho. E resolveu transcrevê-lo. Talvez fizesse sentido
integrá-lo na prosa da viagem. Nessa prosa ela descrevia a dada
altura o pesadelo de um pintor no alto da montanha para onde costumava retirar-se e pintar. O pesadelo, diziam, era causado por um trauma de infância, a relação complexa com a mãe, que nunca estimara a sua arte.

Sim, a seguir à descrição do pintor na sua caverna povoada de sustos, incluiria o conto do caderninho antigo. Chegada ao fim da transcrição recostou-se na cadeira e leu tudo de seguida, para fazer as correcções que ainda fossem necessárias. Hesitou nalguns
parágrafos: Era um bicho. E que bicho seria? Uma aranha? Uma rã? Ou algo de mais insidioso e mais indefinível? Um corpo introvertido. Causava temor pois não se podia dizer na realidade o que era se não fosse aranha, ou rã (mas rã desfigurada). Segregava, ao falar, um veneno mortal. Outras imagens? Tarântula, escorpião...
Terrível foi o momento em que se descobriu que o bicho estava
grávido, e que a sua expansão iria começar.

Daqui, pensou ela, devo aproveitar só uma imagem. Talvez a
melhor seja a da aranha, a da tarântula... Há tarântulas em muita criação moderna, dos metafísicos e dos surrealistas. E é um bicho mais adequado, pelas suas características, ao tecido envolvente das mães. As mães são criadoras (não foi o que Goethe proclamou?) mas cegas, aparentadas à treva, e com uma picada irredutível. Mesmo que não o cortem, podem fazer apodrecer o ténue fio da
vida.

No dia seguinte, como se diz nos contos, preparou-se para a
revisão final. Fez café, e releu tudo o que tinha escrito: acabaria assim mesmo com «o ténue fio da vida», deixando o discurso em suspenso. De qualquer modo nunca seria o discurso esperado para um relato de viagem.

O dia estava encoberto, as gaivotas voavam disparatadamente nas traseiras do prédio. Voavam entre marquises fechadas. Algum símbolo nisto? Escolheria ela afinal, para acabar, o voo desamparado das gaivotas?