Saturday, December 17, 2016

Os caminhos de um rio...

Foi a minha neta Vera, ao escolher para um seu trabalho o que as águas do rio significavam para ela, quando criança, quando o rio era um espaço de descoberta e divertimento, ou atravessado de barco, ou nadando, se a água estava limpa, ou mais tarde em passeios para ir em grupo apanhar ar - o nosso rio Tejo sempre ali, oferecido em esplanadas, a ver as gaivotas, a olhar a outra margem, a conversar, a preguiçar, simplesmente, foi a minha neta que, enveredando por outro caminho, já mais velha, como dizia (ela que é ainda tão jovem) lendo Ricardo Reis me levou também a mim pela mão para uma breve nota do que significa o rio, a sua contemplação, a sua água que passa enquanto o contemplamos...
Li Ricardo Reis em Coimbra, as Odes, quando tinha 18 anos. Foi uma revelação.
Alguma coisa me fez sempre continuar a ler Fernando Pessoa, os seus heterónimos, em especial este, embora eu fosse de raiz, uma Germanista. Ricardo Reis dá o título ao meu romance NÃO SÓ QUEM NOS ODEIA, publicado na antiga Portugália, e em 1968 editado em França, no Mercure de France (uma filha jovem da Gallimard). A dada altura a ed. Asa, numa iniciativa do Manuel Alberto Valente, um bom amigo, publicou de novo esse romance em conjunto com outros, no que teria vindo a ser, - se continuasse o projecto - a edição da minha ficção completa. Esse volume tem por título TRÊS HISTÓRIAS DE AMOR ( ed. Asa, 1994), inclui  QUEM SE EU GRITAR, de influência rilkeana, o já citado, em segundo, relendo Ricardo Reis, e AS PALAVRAS QUE PENA, onde descubro que muito do Mozart que eu ouvia freneticamente, me guiou palavras adentro.
Acabei este no Hotel do Mar, em Sesimbra, num momento de férias de Páscoa na Faculdade, deixando os filhotes com o Pai...O Binau vinha à noite para jantar comigo, na bela varanda do hotel, e depois voltava para Lisboa. E eu escrevia pela noite fora, não tinha horas para acordar, foram dias de felicidade total. Mas fazendo uma coisa que nunca faço, reler um livro meu já publicado, apercebi-me que estava nessa altura em depressão, e que foi essa liberdade oferecida e essa escrita intensa que me ajudaram muito.
A escrita sempre me ajuda.
Mas voltando às águas de um rio...nos poemas de Fernando Pessoa as águas não são turbulentas, a não ser no futurismo exaltado de um Álvaro de Campos, na sua Ode Marítima, feita de pulsões intensas como as que encontramos no Bateau Ivre de um Rimbaud: tudo explosão de desejo, tudo afundamento e morte, nesse mesmo desejo. Mas não é a sexualidade dos versos, dos seus ritmos, que dá o tom à poesia de Pessoa, em geral. E de resto temos de perceber que a água do mar, excessiva, não é como a água do rio, fluente, mas em geral tranquila e passiva. Para a água do mar, seus monstros nocturnos, sagrados, temos Comte Lautréamont, o brutal coito com o tubarão fêmea que o obceca, e que com ele se funde. Pessoa é mais frio, na sua racionalidade, mesmo quando intempestiva.
No meu livro de ensaios sobre Fernando Pessoa, o Amor, a Morte, a Iniciação (partilhei nesse ano com Vasco Graça Moura o Prémio Jacinto Prado Coelho da Associação dos Críticos Literários, para mim um privilégio, porque a obra do Vasco era excepcional, sobre Camões) é à morte, sua simbologia arcaica, que ligo o sentido da água nos seus poemas, e não apenas os de Ricardo Reis.