Wednesday, October 26, 2016

Não há meninas boas

Não há meninas boas, são todas màzinhas

Esta, de quem vou falar, era uma menina de dez anos, loirinha, de pele branca, vivendo em Tavira com a avó.
Estava a fazer na Escola de Pescadores, num só ano, porque depois iria ter com o pai ao Porto, a primeira, segunda e terceira classes, com o pequeno exame final, que daria acesso à inscrição na quarta classe, no colégio que o pai já lhe tinha escolhido. Ela era boa aluna, a professora a ela nunca deu règuadas nas mãos, como dava às outras, quando faziam erros nos ditados. Talvez porque a avó era pessoa conhecida na cidade, e as outras meninas eram filhas de pescadores? Talvez.
Ao fim da manhã voltavam em grupinhos para casa, nunca havia aulas de tarde, a tarde era para brincar. A menina ia para o jardim ao pé do rio, levada pela criada Antónia, que lhe dava o lanche.
Um dos tesouros da menina era uma colecção de fotografias de animais do Jardim Zoológico de Lisboa, que o pai lhe tinha comprado.
Andava sempre com a colecção no bolso do vestido, ou da bata da escola, quando ia para a escola, e mostrava os animais às amigas. Elas divertiam-se, com espanto, nunca tinham visto nada de parecido.
Por ali, no campo, só burros, os dos ciganos, cães, ovelhas ou cabras, conforme, galinhas, vacas, gansos...mas nada de parecido. Era mesmo um tesouro. Na mercearia, um papagaio.

Certa vez, no jardim, um rapazinho que seria da mesma idade, filho do dono da única livraria que havia ali na rua de trás, aproximou-se e deu à Antónia um papelinho dobrado, para ela ler à menina.
-Queres namorar comigo?
 A Antónia desatou a rir.
-Menina o que quer responder?
A menina quis voltar para casa, sem resposta, e em casa ficou a pensar.
O rapazito era meio gordinho, sorridente, mas tão atrapalhado pelo esforço daquela declaração...e quem era ele para lhe fazer perguntas destas? Nem se conheciam...
A menina pegou na colecção de fotos do Jardim Zoológico e escolheu uma da aldeia dos macacos.
Chamou a Antónia e disse-lhe: amanhã vais tu sozinha ao jardim, e levas num papelinho esta fotografia.
Dizes ao menino que a resposta é não, porque ele é mais feio do que estes macacos da aldeia do Jardim Zoológico.
Assim aconteceu.
Mas já no dia seguinte, quando a Antónia contou que o rapazito ficara muito envergonhado, a menina comentou, fiz mal.
E estava a ser sincera....pensou que fizera mal, não por causa do rapaz, mas porque tinha estragado a colecção, agora com uma foto a menos,  não porque tivesse ofendido e humilhado aquele menino que ousara confessar que gostava dela...era assim a menina.

Passaram anos. Ela, já adulta, ainda ia no Verão a casa da avó. Nunca mais viu, nem chegou a saber o que era feito do rapaz.
E ele: teria continuado a ir também a Tavira, onde viviam os pais? Ela, se o visse, não o reconheceria de certeza. E ele? Se a visse ainda se lembraria da maldade?
Seria hoje alguém muito importante, com carro grande, família, herdades de turismo rural na sua velha Tavira? Teria vendido a pequena livraria do pai, onde poucos iam, mais para a má língua do que para comprar algum livro?
Aquela menina pequena, màzinha, estaria ainda presente nalguma memória envenenada?



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