Friday, November 30, 2012

OUTRORA E AGORA

Dizia outrora:
morro se não escrever
a escrita é a minha liberdade.

Não digo agora:
sei
que não é verdade

Friday, November 23, 2012

Afinal quem é o Rúben?

Durante uns anos aparecia e desaparecia, a propósito das suas investigações para uma tese sobre Fernando Pessoa.
No intervalo trabalhava: era jovem, tinha vindo sozinho para Lisboa, dava aulas para ganhar a vida.
Reservado, pouco dizia do seu quotidiano, antes falava da professora espanhola que o queria doutorado mas dizia não saber nada de Pessoa. Porquê escolher Pessoa, tanto grande poeta em Espanha....sou eu que quero Pessoa, respondia o Rúben: o pensamento hermético.
A aventura durou anos e anos de estudo: difícil não era o nosso poeta, era entender bem o que significava pensamento hermético, no seu caso. Pelo meio deu-me a notícia de que se ia casar com uma jovem muçulmana. Parecia ter algum receio de que eu não recebesse bem a notícia. Pelo contrário, desejei as maiores felicidades. Falei-lhe de Ibn'Arabi. Perguntei se conhecia a novela e o romanceiro do Abencerragem, que já existia em edição moderna, da ed. Cátedra. A mais bela história de amor de todos os tempos.
Não há melhor do que amar e ser amado, e em matéria de amores Fernando Pessoa não era a melhor companhia para um jovem como ele.
Subitamente deixei de ter notícias. O Rúben não telefonava, não tocava à campaínha, não pedia mais livros.
Voltou para casa, pensei. Dos livros pouco me importei: se tinham sido úteis, tanto melhor. Teria feito a tese?

Pois foi hoje, num fim de tarde frio, cinzentão, que o Rúben reapareceu: tocou à campaínha, vi na imagem que era ele, mais magro, de cabelo rapado, como agora se usa.
Abri a porta, fingi que lhe apontava uma arma para o matar.
Ele ria.
Queria trazer-lhe os livros.
Trouxeste? Dá cá.
Não, são muitos, queria combinar um dia.
Manda pelo correio.
São muitos, fica um embrulho enorme, preferia vir cá, mas perdi o seu telefone.

Dei-lhe o meu telefone.
Perguntei: continuas em Portugal?
Sim, e acabei a tese, depois podemos falar.
Não sei, tenho andado ocupada.
Eu telefono a saber.

Tinha pressa, ia dar aulas, tinha o horário nocturno de outrora, o mesmo.
Deu-me um beijo, a barba mal cortada como agora se usa, uma barba que pica.
Disse-lhe, à porta do elevador: que modas, rapam o cabelo e deixam a barba mal aparada!
Riu e fechou a porta.
Telefona para a semana.

Um jovem bem educado, elegante, com o Fernando Pessoa às costas e às voltas. Eu tinha prevenido: começas e nunca mais acabas. Não te vês livre dele.
E cá estamos em Novembro, tarde desagradável, a chegar perto do dia em que o poeta nunca mais disse adeus... seja a mim, seja a outros...

Não sei quem é o Rúben e ainda hoje mal sei quem é o Pessoa, poeta e hermético quanto baste.
Mas sei quem sou, agora: dez anos mais velha e dez quilos mais gorda.


O Caderno

Não basta abrir o caderno, pegar no lápis ou na caneta, fixar os olhos algures na distância.
Perdidos os pensamentos não chegam a tomar forma, flutuam indefinidos, esfumam-se, não chegam a ser.
Dar forma é difícil.
Mais fácil seria que a forma se impusesse, se tal coisa fosse possível. Mas não é.
O que nos fica então, na mão perdida sobre as páginas abertas do caderno, sobre o olhar perdido, sobre coisa nenhuma?
Isso mesmo: coisa nenhuma.
E não vale a pena insistir, não vale a pena tentar.
A partir de certa altura, certa idade, o problema que se pode pôr, a alguns escritores, já não é o de começar, mas o de continuar.
Tanto se escreve, tanto se publica (será que tanto se lê ou apenas se vende nas primeiras semanas?); continuar valerá a pena? 
Bem sei como todos os que escrevem sabem, no seu íntimo, que escrever é ir dizendo sempre a mesma coisa, aquela emoção, aquele impulso forte que nos puxa a mão para o papel (ou para o computador) e que parece que nunca chegam a ser expressos por completo.
Mas falo agora do alto dos meus mais de 70 anos: não terei já dito o que valia a pena? para mim, em consciência, ou para os outros, que ali me tenham descoberto?
Distingo entre a prosa de ficção - em mim sempre cortada pela vida real, que irrompe, lembrando que a vida é mais importante do que a ficção - e o teatro ou a poesia. Esta será infindável, enquanto eu existir, porque no caso da poesia ela é a vida que irrompe e a palavra transforma: dela não poderei, quando surge o poema, abdicar nunca, seria o mesmo que um suicídio.
Mas das outras formas sei que posso abdicar.
Basta dizer já chega, agora é ponto final. Lugar aos jovens, é a vida deles que segue em frente, a minha acaba aqui.
O que farei? Disfrutar de tudo o que pus de parte para poder escrever, a deshoras, de repente, aproveitando este ou aquele espaço livre, ou de energia, que mitas vezes não tinha.
A primeira decisão: já não viajo.
Convidam-me, e não digo que não tenha pena de recusar: fui sempre alguém de ir, de ver mais e mais longe, de ver tudo...
Mas agora teria de dizer algo de difícil a quem me convida: não poderia ir sozinha, teria de ir com alguém, uma espécie de secretária/o permanentemente ao meu lado (estou a ver muito mal, perco-me, assusto-me, adoeço!). Dizem: é só um ataque de pânico, isso trata-se.
A melhor recordação que guardo é a de Macau e da China, onde tive todo esse género de apoio: dizem, mas não falavas a língua, aí perdias-te de certeza!
Mas neste momento o mundo (a sociedade em que vivo) é um país tão estranho quanto a China era para mim nessa altura: não entendo o meio (ainda que seja o meu suposto meio literário), perdida a elegância, a gentileza generosa, e a quem conheço bem não quero incomodar com os meus incómodos. Sinto por todo o lado uma voracidade muito semelhante (contaminada? ) à da política, que profundamente abomino.
Assim, retiro-me. A meu lado há muita vida ( a alegria e o riso dos que amo) e a vida continua.