Wednesday, December 26, 2012

Falam os Velhos



Somos os velhos.
Já fomos novos.
Falamos devagar,
já falámos depressa.
O passo é lento,
já foi mais rápido
e o pensamento existe
mas demora um pouco
 mais
a expressar.
Caminhamos ao lado,
já não vamos à frente
e quando começamos
a falar
algumas palavras fogem
e temos de parar.
Vamos em busca delas,
sabemos onde estão
e qual é o caminho:
mas ao calar a meio,
porque somos os velhos,
descobrimos
que já ninguém nos ouve
e já não vale a pena
continuar


(Dezembro, 2012)


Monday, December 24, 2012




Pela Segunda vez, a Mãe....


Pela segunda vez
está deitada a meu lado.

Dorme,
não a quero acordar.
Haverá outra vez?

É a Mãe:
precisava de abrigo



(Lisboa, Dezembro, 2012)

Sunday, December 9, 2012

Eurídice



EURÍDICE

Está com Orfeu:
o que fazem ali
esquecem 
ou lembram?

parados 
no caminho
não sabem,
não têm medo

adiante
escancara-se
a negra boca
do tempo


( a João Sousa Pinto,Dezembro, 2012)


Friday, December 7, 2012

Tão Raramente

Tão raramente
o tempo se amacia

tão raramente o sol
filtra uma nuvem

tão raramente
a noite se suspende...

(para a Isabel, Dezembro, 2012 )

Friday, November 30, 2012

OUTRORA E AGORA

Dizia outrora:
morro se não escrever
a escrita é a minha liberdade.

Não digo agora:
sei
que não é verdade

Friday, November 23, 2012

Afinal quem é o Rúben?

Durante uns anos aparecia e desaparecia, a propósito das suas investigações para uma tese sobre Fernando Pessoa.
No intervalo trabalhava: era jovem, tinha vindo sozinho para Lisboa, dava aulas para ganhar a vida.
Reservado, pouco dizia do seu quotidiano, antes falava da professora espanhola que o queria doutorado mas dizia não saber nada de Pessoa. Porquê escolher Pessoa, tanto grande poeta em Espanha....sou eu que quero Pessoa, respondia o Rúben: o pensamento hermético.
A aventura durou anos e anos de estudo: difícil não era o nosso poeta, era entender bem o que significava pensamento hermético, no seu caso. Pelo meio deu-me a notícia de que se ia casar com uma jovem muçulmana. Parecia ter algum receio de que eu não recebesse bem a notícia. Pelo contrário, desejei as maiores felicidades. Falei-lhe de Ibn'Arabi. Perguntei se conhecia a novela e o romanceiro do Abencerragem, que já existia em edição moderna, da ed. Cátedra. A mais bela história de amor de todos os tempos.
Não há melhor do que amar e ser amado, e em matéria de amores Fernando Pessoa não era a melhor companhia para um jovem como ele.
Subitamente deixei de ter notícias. O Rúben não telefonava, não tocava à campaínha, não pedia mais livros.
Voltou para casa, pensei. Dos livros pouco me importei: se tinham sido úteis, tanto melhor. Teria feito a tese?

Pois foi hoje, num fim de tarde frio, cinzentão, que o Rúben reapareceu: tocou à campaínha, vi na imagem que era ele, mais magro, de cabelo rapado, como agora se usa.
Abri a porta, fingi que lhe apontava uma arma para o matar.
Ele ria.
Queria trazer-lhe os livros.
Trouxeste? Dá cá.
Não, são muitos, queria combinar um dia.
Manda pelo correio.
São muitos, fica um embrulho enorme, preferia vir cá, mas perdi o seu telefone.

Dei-lhe o meu telefone.
Perguntei: continuas em Portugal?
Sim, e acabei a tese, depois podemos falar.
Não sei, tenho andado ocupada.
Eu telefono a saber.

Tinha pressa, ia dar aulas, tinha o horário nocturno de outrora, o mesmo.
Deu-me um beijo, a barba mal cortada como agora se usa, uma barba que pica.
Disse-lhe, à porta do elevador: que modas, rapam o cabelo e deixam a barba mal aparada!
Riu e fechou a porta.
Telefona para a semana.

Um jovem bem educado, elegante, com o Fernando Pessoa às costas e às voltas. Eu tinha prevenido: começas e nunca mais acabas. Não te vês livre dele.
E cá estamos em Novembro, tarde desagradável, a chegar perto do dia em que o poeta nunca mais disse adeus... seja a mim, seja a outros...

Não sei quem é o Rúben e ainda hoje mal sei quem é o Pessoa, poeta e hermético quanto baste.
Mas sei quem sou, agora: dez anos mais velha e dez quilos mais gorda.


O Caderno

Não basta abrir o caderno, pegar no lápis ou na caneta, fixar os olhos algures na distância.
Perdidos os pensamentos não chegam a tomar forma, flutuam indefinidos, esfumam-se, não chegam a ser.
Dar forma é difícil.
Mais fácil seria que a forma se impusesse, se tal coisa fosse possível. Mas não é.
O que nos fica então, na mão perdida sobre as páginas abertas do caderno, sobre o olhar perdido, sobre coisa nenhuma?
Isso mesmo: coisa nenhuma.
E não vale a pena insistir, não vale a pena tentar.
A partir de certa altura, certa idade, o problema que se pode pôr, a alguns escritores, já não é o de começar, mas o de continuar.
Tanto se escreve, tanto se publica (será que tanto se lê ou apenas se vende nas primeiras semanas?); continuar valerá a pena? 
Bem sei como todos os que escrevem sabem, no seu íntimo, que escrever é ir dizendo sempre a mesma coisa, aquela emoção, aquele impulso forte que nos puxa a mão para o papel (ou para o computador) e que parece que nunca chegam a ser expressos por completo.
Mas falo agora do alto dos meus mais de 70 anos: não terei já dito o que valia a pena? para mim, em consciência, ou para os outros, que ali me tenham descoberto?
Distingo entre a prosa de ficção - em mim sempre cortada pela vida real, que irrompe, lembrando que a vida é mais importante do que a ficção - e o teatro ou a poesia. Esta será infindável, enquanto eu existir, porque no caso da poesia ela é a vida que irrompe e a palavra transforma: dela não poderei, quando surge o poema, abdicar nunca, seria o mesmo que um suicídio.
Mas das outras formas sei que posso abdicar.
Basta dizer já chega, agora é ponto final. Lugar aos jovens, é a vida deles que segue em frente, a minha acaba aqui.
O que farei? Disfrutar de tudo o que pus de parte para poder escrever, a deshoras, de repente, aproveitando este ou aquele espaço livre, ou de energia, que mitas vezes não tinha.
A primeira decisão: já não viajo.
Convidam-me, e não digo que não tenha pena de recusar: fui sempre alguém de ir, de ver mais e mais longe, de ver tudo...
Mas agora teria de dizer algo de difícil a quem me convida: não poderia ir sozinha, teria de ir com alguém, uma espécie de secretária/o permanentemente ao meu lado (estou a ver muito mal, perco-me, assusto-me, adoeço!). Dizem: é só um ataque de pânico, isso trata-se.
A melhor recordação que guardo é a de Macau e da China, onde tive todo esse género de apoio: dizem, mas não falavas a língua, aí perdias-te de certeza!
Mas neste momento o mundo (a sociedade em que vivo) é um país tão estranho quanto a China era para mim nessa altura: não entendo o meio (ainda que seja o meu suposto meio literário), perdida a elegância, a gentileza generosa, e a quem conheço bem não quero incomodar com os meus incómodos. Sinto por todo o lado uma voracidade muito semelhante (contaminada? ) à da política, que profundamente abomino.
Assim, retiro-me. A meu lado há muita vida ( a alegria e o riso dos que amo) e a vida continua.

Thursday, October 25, 2012

Os Dias



Os Dias:
De manhã estou morta
de tarde ressuscito
de noite vivo

Wednesday, October 24, 2012


John Dee

Não tinha rosas no quintal,
só um poço profundo
e um corpo de menina lá caído.

Na grande casa de Mortlake,
(já o nome indicava que era espaço de morte
não de conhecimento)
tinha a mesa secreta dos trabalhos,
o globo de cristal enganador,
os espelhos em que não via nada
a não ser o sinal de que lá dentro
se ocultavam as Sombras,
as boas e as más
que nunca revelariam o Segredo.

E o que era o segredo?
O do Elixir de Longa Vida, o  da Pedra Filosofal,
ou talvez o do Pó : o do Ouro vermelho
que os reis ambicionavam.

Viajou pelo mundo
foi cortesão invejado,
foi mago apedrejado
e nada conseguiu:
morreu do mesmo espanto
da sua serva Ana,
a possessa que enterrou no peito
a faca da cozinha,
para se libertar do Grito
 e do tormento.

(2012)

Tuesday, October 23, 2012

O Sábio

O Sábio
é como o Poeta:
inquietação invulgar
inquietação insurrecta!

Monday, October 22, 2012

À Hélia Correia No Seu Sótão

Diz ela: "no meu sótão moram fadas".
Tem sorte, penso eu,
tem sótão, não está vazio, é habitado por fadas:
suponho que sejam boas,
ou não falaria delas
com tranquila gentileza.
Pois poderiam ser más,
e nem sequer fadas a sério,
Sombras vindas de um Além
que embora avise
mete medo
e desse medo
em suspenso
não poderia fugir
como não foge ninguém
desde que já visitado...

São as Sombras do silêncio
do futuro apagamento
do grande espaço vazio
do enorme assombramento...

Não há sótãos nessas casas
que só de noite despertam
ou então de madrugada...

Ela tem fadas no sótão
noutras casas não há nada...

Monday, October 8, 2012



Às Minhas Netas Cavaleiras
(Luísa, Teresa e Joana)

Vão em cavalos alados:
cavalgam nuvens e ventos
são cavalos-pensamento
de crina bem entrançada
pelo negro bem escovado
cascos lavados, ligeiros
e que atravessam o tempo….

Vão cavalgar o destino
cada  qual no seu caminho
mas tendo sempre a seu lado
os cavalos escolhidos,
os verdadeiros amigos
e de pensamento inteiro:
Belo, Bom e Verdadeiro


(durante uma aula de equitação, 2012)

Sunday, October 7, 2012


Um Anjo em Nova Yorque (para o João e a Mariana)





Um pombo côr-de-rosa
na janela

O travesti de um Anjo
no céu de Nova Yorque

Amanhece

Caem flores
como flocos de neve

Despindo as suas asas
o Anjo toca trompete







SOFIA  (para a Cristina e o Pedro)

Assim veio
trazida pelo vento 
asa leve de pássaro
em busca do seu espaço
e do seu tempo


(22 de Fevereiro, 2005)

Friday, October 5, 2012

À Martinha, nos seus 16 anos

Nasceste logo
Melodia
e menina
no teu olhar
ainda brilhavam
estrelas

Vi-te crescer
Beleza
entre belezas

Vinha de noite
a lua
para te adormecer

( 15 de Setembro, 2012)

Thursday, October 4, 2012

O Amigo

Escrevo ao Amigo.
Está longe, a carta não chegará.

Pouco importa,
ficou o gesto,
o desejo,
esse abraço:

era barco
e partia
carregado
de flores
carregado
de sonhos
ainda não
sonhados
poemas
e caminhos
ainda não cruzados

um abraço:
uma palavra nova
ainda por habitar



Saturday, September 29, 2012

O que se foi, O que se é

De criança, pequenas imagens, pequenos flashes parados, sem sequência, quase mesmo sem sentido.
Um jardim, uma rua, um pátio onde brincava com as filhinhas das vendedeiras desse pátio. Hoje é o pátio Bagatela, condomínio dito de luxo.
Também havia um menino, chamava-se Vasco, tinha uma irmã, Guidinha. Nas idas da mãe e da avó às Termas de Monchique esses irmãos iam com ela. A melhor brincadeira era subir pelos carreiros, entre as árvores, com grandes cajados pintados de vermelho.
Lembrou-se que o pai nunca passava esses dias ali, ficava em Tavira, não sabia porquê.
Foi antes de partirem para a Argentina, com a avó a chorar muito, na hora da despedida.
Não foi partir por partir, para os pais foi de verdade um exílio. Dessa estadia de vários anos não há fotografias.


Impossível reviver o passado e ainda bem.
Não seria possível continuar com a vida de todos os dias, se a memória não se perdesse.

Não somos esse passado, que parece ter sido. Não somos.
E o que somos agora não é consequência, é mesmo outra coisa, ainda que difícil de entender.
Olhando para trás o que vejo é somatório, é sucessão, mas sem fios que se entreteçam. Momentos de acaso, uns mais felizes, outros menos. A vida não é uma teia.
Só momentos, sinapses interrompidas por outras ligações a que o cérebro deu preferência.
Os porquês não sabemos.


Tuesday, September 18, 2012

Começar ?

Não será um diário, muito menos uma autobiografia.
Serão talvez notas, pedaços, fragmentos, memórias que ficam pelo caminho.
Autobiografias há muitas, uma a mais ou a menos não faz diferença.
Mas caminhos e curvas de caminhos, talvez possam ter algum interesse: não para todos, mas para alguns...
Talvez então eu me disponha a começar. Veremos.

Havia ali aquela mulher. Abriu uma gaveta, que estava cheia de pó, não era limpa há anos.
Tirou-a da mesa de cabeceira, e limpou com cuidado o fundo, e a seguir, peça por peça, os objectos que se encontravam lá dentro: armação de óculos antigos, envelopes com análises variadas, fotos, muitas fotos, colarzinhos partidos, brinquedos de papier maché de quando os filhos eram pequenos e os traziam da escola.
Pôs tudo em cima da cama e ficou parada a olhar: guardava, deitava fora, escolhia as fotos para um álbum ou para algum caixilho mais bonito...
Não fez nada. Guardou tudo outra vez na gaveta. As suas fotos antigas já não eram ela, eram outra pessoa, que ela já nem se lembrava de ter sido.
Não fez nada.
Um dia alguém abriria a gaveta e ficaria como ela, a olhar.

Tuesday, September 4, 2012

Memórias

Uma pessoa amiga perguntou-me: não queres escrever as tuas memórias?
Não, não acho que tenham interesse.
E porquê?
Porque Memórias só interessam as dos grandes, que mudaram o mundo; eu não mudei o mundo, só me mudei a mim mesma.

Saturday, August 18, 2012

Os Princípios

Os meus primeiros poemas, de que fiz uma escolha para publicar em 1961, têm muito do diálogo que se estabelecia entre mim e os poetas que lia, os pintores que admirava e que eram, à data, sobretudo Jacques Prévert, Henri Michaux, Boris Vian, e Marc Chagall como pintor de quase iniciação.
Nos quadros de Chagall acedia-se a um imaginário tão lírico, tão livre, tão intenso, que de repente eu sentia nascer em mim essa mesma liberdade. E escrevia, correspondendo a esse movimento de alma.
Ficou-me até hoje o prazer da relação com outras artes: 
da palavra, da imagem, dos belos sons da música (clássica, jazz, bossa-nova).
O diálogo é permanente, embora, como é óbvio, eu não escreva agora como escrevia outrora.
Outrora eu vinha de Paris, minha segunda cidade, cheia de energia e de "luz" criadora, para desembocar numa Lisboa tristonha, burguesa, fechada a tudo o que lhe fosse ainda (in)diferente. Os meus poemas destoavam. 
Mas descubro agora, através de  amigos muito mais jovens, que há novos leitores a quem os poemas agradam.
Coloquei dois desses poemas no blog de literatura e arte; mas achei que neste espaço, onde discuto um pouco o que é a criação  na escrita, poderia explicar de que modo me surgiam ideias e imagens, que não sendo de modo nenhum copiadas iam beber à mesma fonte, da alegria e da liberdade parisiense (Chagall também vivia em Paris) enquanto em Portugal a ditadura demorava a ter o seu poente.

O CAFÉ
Sentadas nas mesas do café
as pessoas olhavam sem ver bem
e no olhar semi-adormecido
iam passando em série
os ódios pequeninos, quotidianos
como um enterro de terceira classe
lento e grave
seguido por dois cães de luto
e um chapéu funerário sem cabeça
(in Opus 1, ed.Ática, 1961)

Repare-se no contraste: de Paris vinha a emoção do amor, com Chagall, com Prévert; mas de Lisboa só a melancolia dos cafés...

Wednesday, August 15, 2012

Henri Michaux

A biografia de Henri Michaux, publicada por Robert Bréchon, tem como sub-título "la poésie comme destin": a poesia como destino.Aqui está uma afirmação que nos faz reflectir: o que é a poesia; o que é o destino; e o que é a poesia como destino.
Podemos simplesmente dizer que se entenda destino como objectivo, como propósito final de um esforço, neste caso de produção poética.
Mas é claro que não é isso que Bréchon pretende; o que ele quer dizer é que a vida de Michaux se definiu pela poesia e para a poesia, transformando-se na substância mesma da energia vital que o suportava, na rotina dos dias.
São poucos, provavelmente, na história da literatura, aqueles de quem se pode dizer o mesmo. Que tiveram a poesia como destino. E os que conhecemos morreram talvez cedo, pobres e sós.
Falo de Michaux, poderia falar de Pessoa?
Michaux escreve, num dos seus primeiros textos, já carregados de nostalgia poética:
Il souffle un vent terrible.
Ce n'est qu'un petit trou dans ma potrine,
Mais il y souffle un vent terrible.

Sopra um vento terrível.
É só um buraquinho no meu peito
Mas sopra lá dentro um vento terrível.

Segue o poema (refere-se a Quito, do livro Ecuador) descrevendo a urgência premente de uma grande cidade, com os seus males ( o ódio, a inveja) e todo o desejo que comporta: um desejo como um buraco no peito, por onde sopra o vento, um vento que é Sopro criador, ainda que seja terrível. 
Quando desenvolve este poema, dá-lhe um título que o define, a ele e ao poema...
JE SUIS NÉ TROUÉ 
....
Ah, comme on est mal dans ma peau!
....
Et c'est ma vie, ma vie par le vide.
S'il disparaît, ce vide, je me cherche, je m'affole et c'est encore pire.
Je me suis bâti sur une colonne absente
.....
etc.

Nasci Furado....
Ah como me sinto mal comigo!
E trata-se da minha vida, a minha vida através do vazio
Quando desaparece, este vazio, procuro-me, assusto-me, e é ainda pior.
Ergui-me sobre uma coluna ausente
...
Fernando Pessoa haveria de ter gostado de ler Michaux, são como duas almas não digo gémeas, mas em espelho. A experiência que Michaux teve da África equatorial e tanto o repeliu, teve Pessoa numa infância que não sabemos dizer se foi completamente feliz. Mas que marcou a descoberta e exercício da língua (língua outra, o inglês mas outras, as nativas, ainda mais diferentes) e o que a língua faz ao pensamento que deseja exprimir-se...
A obra de Michaux é levada, na poesia como na pintura,  por esse vento que sopra no seu peito, e o empurra, fazendo com que mude de esfera, flutue no seu vazio, que ele definiu como "algodão e silêncio", um "silêncio de estrelas", que deixa tudo em suspenso. 
O buraco no peito não tem forma, escreve ele adiante no poema, embora seja tão profundo...
Atropelam-se em nós outras imagens: o Ungrund dos místicos alemães (Boehme), ou o Sem-fundo de Paul Celan, o poeta recém-chegado à poesia, também ele, como destino (morre suicidando-se no Sena, em 1970):
Projectado
na via de esmeralda
buraco de larvas, buraco de estrelas, com todas
as quilhas
procuro-te,
Sem-fundo. 
(trad. Y.Centeno, Literatura e Alquimia, 1987)

Michaux, Celan: que confluência de abismos!
Se é certo que em cada poeta e para cada poeta a palavra certa é irrepetível, só a ele pertence, só a ele foi dada(como em revelação, fruto do Sopro interior que leva, eleva, transforma) não é menos certo que todos bebem de uma fonte comum, se afundam numa onda que os lava e se erguem na glória de um destino que foi, como diz Bréchon, de entrega à Poesia.




Monday, August 13, 2012

Começar...

Abri há anos este blog para um grupo de alunos que sendo ilustradores queriam escrever os seus próprios textos.
Um deles perguntava : há uma idade que seja a melhor para começar?
Não, claro que não.
O impulso de escrever surge, como qualquer impulso, de forma algo imprevisível. É uma voz "outra" que deseja falar e toma conta de nós, levando a que se escreva, como na pintura levará a que se pinte, ou se desenhe, ou na música a que se aponte o acorde, enfim, se dê resposta a algo que se tornou premente.
Uns falam de "inspiração", outros de "projecção do inconsciente", como acontece nos sonhos, que os Surrealistas seguidores de André Breton e do seu Manifesto de 1924, abordam como fonte primeira de toda a inspiração e manifestação criadora, ao mais alto grau.
O inconsciente teria pois uma linguagem própria,uma voz nascida das trevas, da escuridão (por ser desconhecida) da nossa psique, contudo riquíssima em imagens, símbolos, arquétipos universais (sendo que este já é um termo herdado de Jung, discípulo de Freud).
Lidamos pois, com a escrita, como nas outras artes, com um imaginário simbólico e arquetípico, que surge devido a algum impulso oculto, primitivo, ou mesmo primordial - se se puder a-posteriori explicar por determinadas memórias e contextos religiosos e culturais, como o da Grande-Mãe, por exemplo.
Não respondi à pergunta da idade:
a idade não importa, o desejo, a alegria, a entrega de escrever surge em qualquer idade. A questão é antes como depois continuar.
Há casos de quem tenha começado muito cedo, aos onze, doze anos, com as primeiras experiências de verso ou de prosa; claro, não significa que aí se tenha revelado a obra-prima, apenas se revelou o desejo de escrever.
Rilke, um dos grandes poetas da literatura universal, escreve, dando conselhos a um jovem poeta que não escrevesse (seria perda de tempo) se para ele a escrita não fosse sentida como uma questão de vida ou de morte. Só assim valeria a pena, começar....e continuar.
Diz-se que o primeiro verso é dado (alusão ao impulso inspirado) mas tudo o mais é "transpirado"....isto é, o trabalho de "sublimar" o que apareceu como se fosse fácil, e a continuação do que se pretenda dizer, exigem já outra capacidade de autocrítica, de distanciamento em relação à obra em curso, e na verdade muita cultura e literatura absorvida e interiorizada.
Não se iluda quem deseja escrever: leia muito, leia tudo. A leitura, o convívio habitual com os maiores do que nós, educam-nos o raciocínio, formam e depuram o estilo, ajudam a entender o que é novo (e por isso com  o nosso contributo ampliamos horizontes) ou o que, tendo já sido feito não deve ser repetido nem apresentado como se fosse novo.
A boa escrita passa também por essa qualidade : a honestidade intelectual!
Pediram um exemplo meu: na realidade publiquei o meu primeiro livro de poemas em 1961, aos vinte e um anos, mas já os tinha escrito uns anos antes, alguns aos dezassete, outros aos dezoito ( e outros até antes, mas nunca publiquei).
Escolho este exemplo do quadro de Chagall, Les Mariés de la Tour Eiffel: a bela imagem do par flutuando feliz como acontece em tanta da pintura de Chagall despertou em mim, na altura, logo um primeiro verso e a seguir o poema inteiro, qua anotei. Bem diferente da sugestão do quadro...e bem de acordo com o que eu sentia, quando jovem, sobre o modo como se desenrolavam as relações amorosas ( e sociais)...Ora leiam:
Pedido de Casamento
Venho pedir a mão de sua filha
disse o jovem tímido olhando para o chão
Porquê a mão?
Porquê ? porque é costume
é a tradição
o meu avô pediu a mão de minha avó
o meu pai pediu a mão de minha mãe
portanto eu peço a mão de sua filha
é lógico é humano é natural
é como deve ser
é convencional...
Só não é original
mas seja disse o pai depois de meditar
pode levá-la mas trate-a com cuidado
era de estimação a mão
como pode calcular...
O jovem abriu e fechou a boca repetidas vezes
admirado
enquanto o velho pai que tinha ideias suas
foi buscar a faca da cozinha
e trouxe para a sala a mão da filha
sòzinha
 (in OPUS 1, 1961)

Deixo à imaginação dos leitores o entendimento do que escrevi; apenas digo o que eram as minhas leituras nessa época:
 Os surrealistas, e
 Jacques Prévert, que devorava, literalmente!
E já agora reparem que da noiva só se vê uma mãozinha....estavam mesmo a pedir o poema!

Sunday, May 6, 2012


O POETA ABORRECIDO

E de repente o vazio
o ennui
o aborrecimento
sem causa nem efeito
as horas não obedecem
ao ponteiro do relógio 
e este, 
falhado o seu destino,
entra em desgoverno
e mata-se
no fundo da gaveta

O homem sentado a ler
não sabe nada das horas
nem do relógio
e ainda menos da gaveta
e do grande desgoverno
se lhe falassem disso 
diria que era treta
ele já se perdeu do tempo
do presente e do passado
o entretém são as letras
elas são o seu relógio
são as horas 
e o ponteiro
são o último dos últimos
e para sempre
o primeiro