Sunday, May 1, 2011

Versos

Muitas vezes é no primeiro verso de um poema, ou no último, ou em ambos que iremos encontrar alguma indicação especial, pedindo mais reflexão.
Aconteceu-me reparar nisso ao reler ultimamente o poema de Rilke sobre o mito de Orfeu e Eurídice.
" Era a mina estranha onde se encontram as almas" - eis o verso inicial.
Deste modo, aparentemente apenas descritivo de um lugar, evoca Rilke Platão, o diálogo de Fédon, em que se fala da caverna das almas, neste sentido de "essências" de ser, de formas puras de que as formas reais seriam apenas sombras (sombras de uma realidade superior, inatingível).
A mina- uma caverna platónica- é estranha exactamente por isso: por ser anterior aos seres tal qual os conhecemos.
Orfeu e Eurídice ainda lá se encontram, ainda não têm existência real, não são ainda as formas de que o mito tradicional nos fala.
Rilke coloca-nos numa outra esfera, de anterioridade. Diverge, sem que nos apercebamos logo desse facto, da realidade do mito.
Orfeu e Eurídice, ainda não são e em breve já não poderão vir a ser , tal como se julgava outrora, quando os mitos eram realidades vividas.
E podemos então meditar sobre o último verso, com que o poema termina:
"Quem?"
pergunta Eurídice, perdida toda a memória de um Orfeu que ainda não tinha sido e não seria mais.
Entre o não-ser-ainda da caverna das almas e o já-não-ser da memória perdida se estrutura um poema que podemos ler e reler, descobrindo de cada vez mais um fragmento do seu mistério envolvente.