Tuesday, October 18, 2011

Ler Poesia


A poesia tem algo de especial e que a diferencia da narrativa, outra forma não menos interessante de criação literária.
Podemos ler só um poema, ou só um verso que nos atraia e ficando nele ampliamos a nossa relação com o mistério que toda a obra contém.
Da narrativa esperamos (exigimos) que tenha um fio que se desenrole e a cada momento (capítulo) acrescente mais matéria à que já foi exposta, conduzindo( ou não, os modernistas trouxeram a obra aberta) a um final que conclua o enredo inicialmente aberto e foi criando determinadas expectativas ao leitor.
Com o poema tudo é (aparentemente) mais fácil: abrimos o livro ao acaso, começamos onde calhe ter ficado a página, e lemos:
alguma poesia é mais quotidiana, mais directa, mais narrativa;
outra será mais condensada, mais hermética, obrigando a uma releitura ou uma reflexão mais demorada;
alguma viverá sobretudo do ritmo,
ou da voz que rima e canta,
outra usará o verso como se fosse prosa,
etc.
Para cada estilo, haverá um leitor "ideal".
E para cada leitor um autor, um poeta, um poema ou mesmo só um verso que o marque para sempre.
Recordo Sophia de Mello Breyner e um dos poemas do livro CORAL que li quando jovem e nunca mais esqueci:

Ia e vinha
e a cada coisa
perguntava
que nome tinha

Mais tarde, ao ler as Aventuras de Alice, este poema que nunca mais esqueci remeteu o sentido da interrogação para o decifrar das questões que eram colocadas pela impertinente lagarta a essa menina ora em crescimento ora em diminuição impossível.
Aí estava o segredo, no desejo de saber, algo que só perguntando, perguntando sempre pode alcançar resposta, se existir. Pois nem sempre há resposta...
Fiquemos com esta ideia de que poesia é interrogação.
Pensando em Rilke, outro grande poeta que também me marcou quando era jovem, evoco o primeiro verso de uma das Elegias de Duíno :

Quem se eu gritasse me ouviria entre as hierarquias dos Anjos...

Tão forte o seu mistério, tão intensa a interrogação, que quando precisei de um título para o meu primeiro romance foi neste verso que me inspirei.

Falamos de poesia "popular", de poesia "culta", de poesia "concreta", de poesia "experimental" - mas pouco importa.
O acto de criar, neste caso, o poema, nasce de uma pulsão que é funda, ou não é coisa nenhuma; nasce de um sentimento, mais do que de uma intenção ou de uma ideia-feita.
Mas claro, se o poeta é culto, é muito natural que nos seus poemas entre em diálogo com o que leu e nesse diálogo dê uma outra voz à matéria poética "integrada".
Nada nasce do nada e a voz poética tem também a sua raiz, a terra que a alimenta.

Vem isto a propósito do último livro de Ana Luísa Amaral, VOZES, (Dom Quixote, 2011) cuja leitura me entusiasmou e só posso recomendar.
O leitor encontrará nesta obra o coloquial e o erudito atravessados por um fino humor que não se compadece de lágrimas furtivas ainda que exprima espanto, ou dôr, ou algum sofrimento, como o de quem conhece a solidão.
As Vozes de Luísa são muitas e todas nos desafiam.
Poderá ser na cama, na praia, na cozinha, num qualquer banco de jardim: mas ali estão e estão (como Deus está na Mandorla de Celan) porque é de sempre a voz da poesia, é de sempre o seu eco, vindo do Antigamente ou do Agora e Aqui.
Nos poemas encontro Rilke, mas encontro Bocage, ou o trovar dos Cavaleiros, ou os mitos de amor como o de Pedro e Inês.
Mas encontro acima de tudo, e com que indizível prazer, uma escrita despida, moderníssima de linguagem, e nas entrelinhas a subtil mas permanente discussão do peso da palavra ( o sentido e o estilo).
São sílabas? São versos que cantam e encantam, interrogações como as de sempre, de Sophia ou Alice, num nomear que é dela, Ana Luísa, e não poderia ser de mais ninguém: Ana Luísa rompe e interrompe, a palavra poética tornou-se o seu domínio, ela domina o verso e o seu avesso!


Saturday, October 15, 2011

Almas, com dedicatória especial ao António

A reacção de um amigo escritor ao pequeno poema que lhe enviei, Almas, e a seguir transcrevo, levou-me a várias considerações sobre o acto de escrever, a mão que escreve, a origem do impulso que dirige o tema, as ideias, as imagens...Dizia o meu amigo que o poema transcende a esfera do seu entendimento e que ele é mais da prosa do que da poesia. Claro que estava a brincar.
Eis o poema:
Para que alma voltamos
na hora de partir:
há uma alma que chora
há uma alma que ri...

Na altura pensei em recordar ao António (é o nome do amigo) que já Platão falava nos cavalos da alma, que já os antigos hindus falavam da transmigração das almas ( o que supõe a existência de suas várias transformações) que o Livro Tibetano dos Mortos ( que foi durante muitos anos para mim um livro de cabeceira) indica logo nas primeiras páginas de que modo a alma deve buscar a luz condutora, para evitar uma reencarnação penosa - enfim, que há todo um saber arcaico, um imaginário poderoso que de repente pode surgir num conjunto de versos que ocorrem e tomam conta da nossa própria escrita, sem que saibamos logo o porquê e o como.
É essa obscura memória do que foi lido e guardado que pode, nalguns casos, como este, suscitar de repente um texto só aparentemente misterioso.
Procurando exemplos mais recentes, descubro em T.S.Eliot e Paul Celan matéria que seria ideal para epígrafe, antecedendo o meu poema, tornando-o, quem sabe, um pouco mais claro:
T.S.Eliot
"Surge da mão de Deus a alma simples..." (Animula)
Paul Celan
" Coloca então as folhas junto às almas..." (A Posse dos Sonhos)

O que quero dizer é simples: que por vezes é o comentário ou a interrogação de um outro, neste caso o meu amigo, que nos obriga ao esforço de perceber de onde veio o impulso, que razões (neste caso leituras, reflexões bem antigas) estão afinal na origem de um pequeno alinhar de versos que de repente nos surgem e passamos ao papel.